entre cartografias e caligrafias

entre cartografias e caligrafias

Uma carreira como professor universitário e como especialista na área de geoprocessamento não apagaram algumas memórias antigas, uma mistura complicada de emoções, como quando experimentei pela primeira vez uma caneta tinteiro.

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“A memória é o único paraíso (ou inferno)
do qual não podemos ser expulsos e
somente nós temos as chaves.”

Adaptado de Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825)

Algumas sensações da infância ainda permanecem vívidas em minha memória, mesmo após tantas (alguém aqui me sugere escrever – algumas) décadas. Lembro-me de experimentar pela primeira vez uma caneta tinteiro, sentindo ao mesmo tempo prazer e tormento ao segurar aquele objeto estranho. Ele combinava sensações desconhecidas ao mesmo tempo de uma estética superior e de uma certa solenidade, não condizentes com a minha mão ainda infantil.

Eu era uma criança de oito anos, estudando no terceiro ano primário de um colégio de freiras em uma pequena cidade na fronteira do Uruguai com o Brasil. Recordo-me da caneta com seu plástico verde escuro e detalhes em metal dourado, que, na época, parecia para mim algo próprio de adultos. O cheiro da tinta azul que vinha de um frasco de vidro da Parker e a teimosia da pena em evidenciar minha imperícia, deixando manchas azuis em meus primeiros cadernos, ainda são presentes.

Aquelas sensações ao lidar com uma ferramenta de escrita complexa, proporcionadas por uma freira do País Basco, gerou um misto de sentimentos desde a incapacidade de traduzir na forma escrita meus pensamentos até uma inveja de quem tinha uma bela caligrafia. Essa incompletude me acompanhou por anos, até que, já na adolescência, conheci outra freira (desta vez do outro lado da fronteira) que era uma exímia calígrafa. Embora de forma inconsciente, ela reacendeu o desejo de empunhar uma pena.

Anos se passaram até que esse desejo inconsciente viesse à tona. Tornei-me engenheiro e passei a descrever o mundo não com palavras, mas por meio da cartografia. Aprendi a cortar o mundo em camadas, simplificando-o de forma objetiva, específica, generalizada e elegante. Descobri como dosar as cores, as proporções, as escalas. Aprendi a arte e a técnica de transformar ou projetar uma superfície curva em um plano. Nessa jornada, surgiram outros mentores, além das freiras do primário.

No entanto, o desejo de escrever à mão nunca se dissipou e, pelo contrário, foi se tornando cada vez mais consciente. A curiosidade despertada pelo primeiro contato com a ferramenta. A sedução de um instrumento ainda reservado para um futuro distante. A facilidade de rabiscar desenhos ou alinhar anotações antes de finalizar um mapa.

O destino ou a persistência ou ambos me presentearam com a felicidade de perceber que, apesar da dor de empunhar uma caneta tinteiro (agora não mais verde com dourado), essa ferramenta elevou a minha capacidade de expressar o mundo de maneira única, tátil, visual e, por que não dizer, também auditiva (quando leio em voz alta o que escrevo).

Posso dizer que cada passo exige seu tempo, e que as sensações de dor e de prazer podem se combinar. E que além disso ainda sinto o prazer do aroma (ou seria um perfume?) da tinta no papel.

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Sobre quem escreve

Doutor em Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto (com tese sobre complementaridade espacial de recursos renováveis), Mestre em Recursos Hídricos, professor (e atualmente vice-diretor) do IPH da UFRGS.
Contato pelo email risso@iph.ufrgs.br