um gato em frente a relógios antigos

o nome acabou associado a tragédias e catástrofes

Conto inédito escrito durante o período da pandemia a partir de uma ideia anotada há algumas décadas. Um homem busca suporte psicoterápico e expõe questões do passado que considera estarem não resolvidas. Um personagem improvável surgiu e, como um exercício, deve ser transformado em um verbete de enciclopédia.

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Armaggedon

[por Alexandre F. Beluco]

   Cheguei ao local cinco minutos atrasado e isso sempre me incomoda.
   — Bom dia, senhor — disse a jovem recepcionista, em alemão.
   Cruzei a entrada do prédio e me apresentei.
   — O elevador está à esquerda. O senhor Heinrich o aguarda no quarto andar.
   Alfredo faz menção de dizer algo e, em nossa última sessão, houve um conflito sobre suas manifestações. Depois entendi que eu próprio havia sido precipitado. Entendi também que era de certo modo parte de sua encenação. Parte do jogo entre analista e analisado.
   — Eu vou relatar o maior erro que cometi.
   Ocorre uma pausa.
   Em parte porque eu tenho muita esperança no gênero humano. O aprendizado faz parte de sua experiência e eu acredito ter muito a compartilhar. Do alto de minha longa existência, eu vi os piores de seus erros. Mas também presenciei seus bons momentos — e foram memoráveis.
   Em parte, também, porque construí uma imagem de mim mesmo e esse erro não se encaixa nessa imagem. Seria uma sombra de arrependimento?, eu segui. Não aquele que leva as pessoas aos confessionários. E, sim, aquele que tira o sono e embaça a própria imagem no espelho.
   — Entenda que a atividade que foi sugerida em nossa conversa da semana passada é uma forma de organizarmos as ideias.
   — Eu entendi — comento, depois de nova pausa.
   — E então? Você tentou escrever o verbete?
   — Um verbete de enciclopédia? Você estava falando sério?
   Ele freia um sorriso. Um sorriso irônico, é verdade.
   — O verbete começaria assim: “Armaggedon talvez tenha sido a divindade menos conhecida entre todas do Olimpo. Ele na verdade existia já desde muito antes daquilo que ficou conhecido como ‘período helênico’. E continuou atuando mesmo depois do culto aos deuses e semideuses olímpicos ter se extinguido e mesmo ainda quando esse culto tinha se tornado um conjunto de estórias de seres super humanos e de seus feitos e capacidades extraordinários.”
   Alfredo olha através da janela. Eu o observo, aguardando alguma opinião.
   — Eu talvez devesse ter dividido a última frase em trechos mais curtos.
   — Nós não vamos discutir o verbete do ponto de vista literário — ele diz, agora sim com um sorriso irônico. Ele me criticava? Ou ria abertamente de mim?
   — Seguindo: “Armaggedon era respeitado como uma divindade e foi adorado pelos gregos em um período conturbado de sua história. Muitos especialistas nem sabem de sua existência ou não o consideram como uma entidade olímpica, talvez por ter aparecido no apagar das luzes da era helênica. Ele era sempre associado aos trabalhos manuais mais elaborados do ponto de vista intelectual e mesmo às atividades de natureza mais introspectiva. Era o inspirador dos artífices!”
   — É um verbete interessante — ele comenta. — Armaggedon então é o deus dos artesãos?
   — Quem sabe essas nossas sessões não levam ao surgimento de um novo escritor?
   Ocorre uma nova pausa.
   — “Em certa época, ele era respeitado como uma divindade que auxiliava quem deveria cumprir prazos ou quem encontrava dificuldades para cumpri-los ou quem tinha dificuldades para cumprir acordos. Dele se lembravam os alunos que precisavam concluir suas atividades de casa, dele se lembravam os agricultores que precisavam fazer sua colheita, dele também se lembravam todos que por algum motivo se encontravam atrasados para algum compromisso.”
   — Esse verbete se encaixaria em qual enciclopédia?
   — Eu devo rir ou eu posso continuar a apresentar meu tema de casa?
   — “Erroneamente, dele também se lembravam os que seriam encaminhados ao cadafalso, que davam seus últimos passos em vida, que tinham hora marcada com algum carrasco. Além de ser frequentemente lembrado também por todos aqueles que recebiam um parecer definitivo de seus médicos, um prazo limitado de vida, um fenômeno recente e surgido principalmente com o desenvolvimento da Medicina e da Ciência depois da Segunda Grande Guerra.”
   Ocorre agora outra pausa, mais longa.
   Eu cheguei no quarto andar e um jovem alto, loiro, me aguardava. Ele me conduziu até a sala onde ocorreria minha reunião. O senhor Heinrich era um alemão de meia idade, ou meia vida naquele período histórico, muito alegre e bem-humorado. Eu sempre desprezo, ou desprezava pessoas mal-humoradas, mas naqueles dias aprendi a repensar esses velhos preconceitos.
   — Continuando: “Muitos de seus seguidores acreditavam piamente que ele fosse algum tipo de filho ou neto bastardo de Zeus ou de algum de seus irmãos ou mesmo de seus filhos menos famosos, já que ele não era citado em listas oficiais de deuses ou semideuses olímpicos. Os mais céticos se satisfaziam com a ideia de que ele fosse uma divindade menor, muito menor enfim, abençoado por algum feito extraordinário. Ele sabia que na verdade dispunha de um tipo de capacidade extraordinária.”
   — Você escreve bem.
   — Apesar das longas frases?
   Eu seguiria lendo, mas pergunto ainda:
   — Esse elogio é parte do jogo psicanalítico? — e aguardo alguma manifestação.
   Alfredo permanece fitando o ar adiante da vidraça da janela.
   — “O próprio Armaggedon não sabia quem eram seus pais ou de onde vinha. Ele inclusive demorou algumas eras para entender exatamente essa ideia de paternidade. Ele também não sabia para onde deveria ir ou mesmo qual poderia ser seu propósito aqui na Terra. Tampouco tinha uma noção muito elaborada sobre ‘propósito’ em seus primeiros séculos. Acrescente-se nessa lista de desconhecimentos que ele não sabia quantos filhos já tivera.”
   — Você é um deus olímpico e vive por aí desde aquela época? — Alfredo não se segura.
   — É claro que não! — respondo, não contendo um olhar incrédulo, em resposta.
   É um final de tarde de quinta-feira. É uma semana da primeira quinzena de julho no hemisfério sul. Quer dizer, inverno. Eu estou residindo no sul do Brasil já há alguns anos e a morte recente de minha esposa me levou a relembrar fatos importantes do passado.
   — Eu posso continuar? — pergunto, depois de alguns momentos em silêncio.
   — “Seu nome talvez venha da expressão em hebreu ‘har meggido’,” — continuo, depois de uma expressão dele, abrindo caminho, — “que significa ‘o campo de batalha final entre Deus e o Demônio’. Ou ‘o campo em que se defrontam de modo definitivo o Bem e o Mal’. Meggido é uma região do Oriente Próximo onde se acreditava que ocorreria esse confronto. E pelas forças envolvidas, imaginava-se que seria de grandes proporções. Mas ele se lembra de ser chamado assim desde antes da região ser conhecida ou denominada desse modo.”
   Alfredo parece interessado.
   — “Nem ele próprio sabia seu nome e por isso mesmo sempre lhe interessava saber por que esse ou aquele lugar tinha alguma denominação específica. Precisou de muitos séculos para se entender como pessoa, ou como entidade, e em sua existência faz relativamente pouco tempo que ele goza de uma identidade. Faz relativamente pouco tempo que ele se reconhece como Armaggedon.”
   A conversa com o senhor Heinrich era o que ele realmente precisava expulsar de suas entranhas. Aquele homem alto e magro o levou para uma mesa em outra sala relativamente confortável, onde uma lareira e algumas poltronas revestidas com um couro muito bem trabalhado. Uma mesa pequena albergava alguns papéis esparsos, mas uma mesa maior parecia estar destinada às grandes decisões.
   — “Nem ele próprio sabe que seu nome vem de um idioma muito antigo, já esquecido, que era falado em uma pequena região onde hoje está situada a Turquia. Esse idioma teve relativa influência sobre os idiomas falados pelos povos que viveram naquela região e nas regiões vizinhas nas eras seguintes. Seu nome seria pronunciado como ‘arm ad diedon’ e significava aproximadamente ‘aquele que não desiste’, ou também pode ser entendido como ‘aquele que persiste’.”
   — Você pesquisou sobre a Turquia?
   — Eu vivi na Turquia algum tempo — respondo. — Tempo demais talvez.
   — “Uma coisa certamente ele sempre soube: o que lhe agradava. No começo, um instinto; mas, agora, convicções. E esse conhecimento pode mesmo estar relacionado a essa habilidade que tão bem o caracteriza. Entretanto, ele também tem uma noção bastante exata de que nem tudo em seu passado poderia ser considerado como bom. Mesmo em seus devaneios ele sabe que em seu caminho ele alternou bons e maus momentos. E seus maus momentos foram realmente muito ruins.”
   — “Ele conheceu prazeres diferentes em épocas diferentes” — eu continuo. — “Ele havia migrado para Roma para se divertir como um gladiador, vendo as multidões urrarem pelos seus feitos. As lâminas cortando carne, provocando sofrimento para uns e divertimento para outros. Também reservara alguns anos para se deleitar entre o povo nas arquibancadas, acompanhando o que ocorria nos bastidores. Aqueles homens e mulheres no início da civilização.”
   Uma troca de olhares e um pequeno intervalo de alguns instantes na narrativa.
   — “Perdera a conta das vezes em que participara de guerras integrando exércitos de homens famintos e selvagens. Divertia-se com a inabilidade de alguns generais, mas se sentia muito satisfeito quando outros conseguiam feitos extraordinários. Ele se alimentava sempre que seus comandantes não pretendiam apenas vencer por riqueza ou fama ou por outros motivos menores.”
   — É uma história interessante — ele comenta.
   — Ele passou algumas décadas entre os mongóis também.
   — Você não está percebendo que a fantasia pode estar embaçando a realidade?
   — Os limites entre fantasia e realidade podem ser tênues, não é?
   — É um ponto de vista, de fato.
   — “Viajou inúmeras vezes entre a Europa e o Novo Mundo” — eu continuo a leitura do verbete, — “em diversos navios de espanhóis e de portugueses. Também foi um pirata durante muitos anos e chegou a morar durante quarenta e cinco anos no Japão, quando se apaixonou por uma jovem senhora japonesa que mudou sua visão do mundo.”
   Heinrich estava falando sobre as intenções de seu governo e sobre os planos para a reconstrução de seu país. “Veja como nossos cientistas estão muito mais adiante dos cientistas da América, ou dos britânicos ou dos russos”, ele dizia. “Mesmo os nossos poetas e artistas veem o mundo com mais sensibilidade e bom senso, sem essa bobagem de comunismo.”
   — “Acompanhou por um tempo um certo italiano, rebelde e pirata, um mercenário que sabia, como poucos de sua época, aproveitar a vida e o fato simples de estar vivo. Uma de suas lembranças mais marcantes é a de dois barcos sendo transportados por terra, puxados cada um por mais de cem bois.”
   — Este foi o Garibaldi, não foi? — ele pergunta.
   — “Esteve entre os incas” — continuo, — “e também entre os astecas, em épocas diferentes.”
   — Este Armaggedon teria seguido vivo por aí — ele parece querer entrar nessa aparente fantasia, segundo ele próprio, talvez mudando de estratégia. — E as outros deuses do Olimpo?
   — “Viveu como um abade“ — sigo, depois de buscar seus olhos e prender sua atenção, — “a rotina maravilhosa de beber vinho e comer pão, além de ‘rezar muito’, demais até, enquanto mantinha a cultura que estava registrada em textos que eram repetidamente copiados para não serem perdidos. Naquela monotonia ele se encontrou e conheceu melhor a si mesmo.”
   “A Alemanha deve superar seus oponentes por um simples merecimento cármico. Eu estou enumerando tantas razões que se eu continuar você vai querer encerrar essa nossa conversa antes de entrarmos no que mais me interessa e no que me fez convidá-lo para vir aqui.”
   — “Também viveu entre os germânicos e com outros povos bárbaros no período em que ocorreram inúmeras guerras na fronteira com os romanos. Esteve próximo a um louco imperador que havia perdido sua esposa e passara a empalar seus inimigos. Mas sobre ele, as lendas contavam muito mais do que ele havia feito e do que ele próprio seria capaz de acreditar.”
   Ocorre uma pausa.
   — “Ele se divertiu com algumas tribos de ciganos que alcançaram um razoável nível de organização e que inclusive colocaram medo em muitas divisões de romanos. Eles corriam pelos campos de batalha gritando ‘nós vamos ferrar com vocês e foder as suas mulheres!’ Ele adorava demais aquilo tudo!”
   — Este seu personagem gostava de cruzar os campos a cavalo gritando que comeria as mulheres de seus inimigos?
   — Durante aquele período da História, sim.
   — Mas quem de nós não adoraria fazer isso?
   Olho em sua direção com um certo ar de reprovação. Ele não chega a se constranger.
   — “Estava aproveitando de um modo especial o século XX, quando vinha experimentando diversos tipos de automóveis. Ele adorava as Alfas e os Mercedes, as Maseratis, alguns Horchs e alguns dos primeiros modelos da Aston Martin, mas tinha especial predileção por uma certa Ferrari 275, short nose, amarela, que pertencera a um conde italiano. Não era uma 250, era uma dois-sete-cinco!”
   Esse conde vivia no alto de uma elevação e a estrada que conduzia à sua residência havia sido pavimentada há pouco e era bastante solitária. Armaggedon se empregara com a família e apresentara um currículo invejável (e que não era falso!) como engenheiro mecânico de uma falida escuderia da Fórmula 1. É claro que caíra no agrado do conde com facilidade!
   E de fato ele não mentira sobre sua experiência como engenheiro mecânico. Ou na verdade um esforçado assistente de engenheiro mecânico. Trabalhou alguns anos entre aqueles que preparavam as Flechas de Prata. Ele conseguira trabalhar primeiro com a Mercedes e depois com a Auto Union. E depois da guerra ele também soube envenenar alguns motores.
   Durante esse período, houve o convite para conversar com o senhor Heinrich. A conversa não revelara um alinhamento ideológico completo, mas a empatia que surgiu levou a um aperto de mãos em sua conclusão. “O senhor Joseph vai ficar muito feliz quando souber de suas intenções de contribuir com o projeto nacional que está sendo empreendido.”
   Mas a Ferrari do conde era uma verdadeira ‘obra prima’! Una bela macchina!
   Houve um corredor italiano que talvez fosse tão louco quanto ele próprio. Chegou a pensar que tinha encontrado alguém como ele, porque ele se arriscava demais e nunca lhe acontecia nada. Ou quase nunca. Certa vez, ele sofrera um acidente terrível e acabara em uma cama de hospital, completamente quebrado. Mas esse louco deixaria de competir entre as motos? Claro que não. Convenceu seus mecânicos a ser amarrado à sua moto e segurado na partida até que colocasse o veículo em movimento. O resultado nem precisaria ser revelado. Ele venceu!
   Mas… a Ferrari do conde…
   — Se bem me lembro, essa Ferrari dois-sete-cinco que você citou é mais recente, não é?
   A condessa se esforçou muito para seduzi-lo, inclusive arregimentando-o para uma viagem curta até a Suíça na sua tão amada Ferrari com a desculpa de visitarem um genial joalheiro que aceitara recebê-los depois de muita insistência. “Não, não, meu coração ainda é de uma senhora japonesa, falecida há alguns anos,” ele teria dito. O que também não era uma mentira.
   Mas ele não consegue apagar de sua memória que também havia se divertido, num passado muito distante, jogando crianças em valas com cães provocados além de seus limites. “Os cães eram assassinos.” Os homens são assassinos. Falhas como essa lhe valeram muitos anos de isolamento. E ainda lhe causam noites de insônia. Em algum momento ele pagaria por tudo aquilo.
   — E então — ele tenta interromper. — Armaggedon comeu a condessa?
   Quatro dias depois ele se reunia novamente com o senhor Heinrich. Naquele momento, parecia um bom homem, mas algo não estava bem. Conversaram alguns minutos e logo chegou o convite para se unir ao empenho coletivo no qual estavam mergulhados até o ´pescoço e lhes valeria a vida. Aquela reunião contou com a participação do já bastante poderoso senhor Joseph. Ao final, novos apertos de mão e um acordo que não lhe permitiria mais dormir em paz.
   Isolamento dos seres humanos, porque nunca havia encontrado outros como ele. Desconfiara de alguns, como um outro corredor, um piloto, muito famoso, um que tratavam como um samurai, de quem diziam que não importava a máquina, ele sempre se sagraria vencedor. De fato, nunca encontrara outros como ele.
   — Eu não entendo muito de Fórmula Um, mas este não seria o…?
   Mas nunca perdera a capacidade de se surpreender com as pequenas genialidades do homem. E tentava sempre estar por perto quando algo bom estivesse acontecendo. Ele percebera com o tempo que conseguia se alimentar desses bons sentimentos.
   Aliás, o que mais o agradava vinha justamente dos seres humanos. Um tanto contraditório, é verdade, mas era algo que ele descobrira ao longo do tempo.
   Na verdade, ele se manifestava de modo sutil, sempre que alguma tarefa que parecesse impossível devesse ser realizada. E se essa impossibilidade estivesse associada à falta de tempo, aí então ele se esforçaria ainda mais. A capacidade humana de se superar em momentos de dificuldade sempre o fascinara.
   — Armaggedon era um imortal?
   Não, não era. Não em sua forma humana.
   Certa vez, uma jovem precisava realizar uma pesquisa para o colégio. Ela deveria escrever sobre o trabalho menos conhecido de Einstein, o efeito fotoelétrico, que lhe rendera o prêmio Nobel. Ela se julgava incapaz em física e odiava profundamente o professor desde o momento que lhe atribuíra essa tarefa.
   Em um período em que um outro professor havia liberado os alunos, por problemas pessoais, ela foi à biblioteca da escola e buscou livros que pudessem ajudá-la na tarefa. Inclusive, ela superou sua dificuldade de preparar trabalhos com antecedência porque imaginava que este seria especialmente difícil.
   Ela folheou os livros não pensando em encontrar elementos para a construção do tal trabalho. Ela gostaria mesmo de encontrar um milagre, ali, entre aquelas páginas. Mas a cada nova ideia que absorvia, ela sentia que esse caminho lhe parecia menos agressivo e mais iluminado. Trilhava um caminho inteiramente novo.
   A jovem então percebeu que aquilo lhe agradava. O assunto em si era muito interessante e o fato de ter feito mais do que aquilo que era esperado dela lhe deixou especialmente excitada. Simplesmente ter ido além. O reconhecimento alheio nem era um fator importante para ela. E essa excitação alimentou Armaggedon.
   Antes disso, muito antes, um humilde sapateiro tinha uma vida bastante difícil, sempre ganhando com seu trabalho o suficiente para alimentar sua esposa e seus vários filhos, pagar os impostos exigidos pelo governante e o dízimo exigido pela igreja. Em várias ocasiões ele não conseguira receber nem o mínimo suficiente.
   Então em certo dia foi visitado por um homem bem vestido que lhe perguntou se poderia produzir um número enorme de sapatos em um intervalo de tempo curtíssimo. Ele disse que era impossível. E o homem lhe disse que se não aceitasse ele encontraria quem o fizesse e que não deveria reclamar de seu triste destino.
   O sapateiro teve uma iluminação súbita e aceitou o desafio. O homem disse que retornaria em dois dias com o material necessário para confeccionar os tais sapatos. Nesse período, o sapateiro pensou em tudo que poderia alterar em sua rotina diária para que seu trabalho tivesse melhor rendimento. Algumas ferramentas, um planejamento diário, a cumplicidade de sua dedicada esposa.
   O sapateiro conseguiu cumprir a cota estipulada por aquele homem de um tal modo que sobrara material. E em período de tempo menor ainda conseguiu usar essas sobras para produzir mais sapatos. O homem bem vestido gostou de ter encontrado mais sapatos do que havia pedido e solicitou um novo lote.
   E Armaggedon se alimentou da excitação do sapateiro ao perceber que havia conseguido. O sapateiro sentira-se feliz por ter sido elogiado pelo tal empreendedor que o contratara. Mas a maior felicidade, e essa era uma novidade, era ele ter cumprido algo que ele próprio havia se comprometido a cumprir.
   E ele poderia enumerar vários exemplos como esses que ele havia vivenciado nos últimos séculos. Se alimentava regularmente, como qualquer pessoa, e amava também, como qualquer pessoa, mas em uma espécie de dimensão alternativa, nesses momentos alcançava uma felicidade inexplicável.
   Eu só queria esse tipo de alimento, e apenas isso, quando decidi trabalhar com aqueles alemães. Mas eles não queriam exatamente o que poderia trazer saciedade. Houve um momento, é verdade, em que queria experimentar coisas novas, sabores e matizes diferentes.
   Depois de um lapso momentâneo, caio em mim novamente.
   — “Armaggedon percebe hoje que demorou muito tempo até saber exatamente o que lhe agradava. E em seu passado muitas manchas permaneciam, lembranças que preferia não atiçar. Muitas delas ainda anteriores às últimas eras glaciais. Mas ele agora sabia o que de fato lhe fazia feliz e isso que era importante.”
   — E ele sabe como consegue estar vivo há tanto tempo?
   — Ele se alimenta do esforço dos homens e mulheres.
   — Mas o que o mantém vivo?
   — Ele morre e renasce. Aprendeu a lembrar de suas vidas anteriores.
   — Mas isso não faz dele um deus!
   — Um caolho em terra de cegos não pareceria um rei? Ele apenas sabe das coisas.
   — Ele é o fruto de sucessivas reencarnações então?
   — “Entre todas as suas experiências, ele percebera também que uma fonte inestimável de prazer poderia ser obtida do simples fato de ele próprio planejar a longo prazo e cumprir seus planos. E dentre todos os planos que ele havia experimentado ou que ele havia testemunhado, plantar videiras ou oliveiras, acompanhá-las ao longo dos anos e processar seus frutos e obter deles materiais tão nobres quanto saudáveis ou saborosos é uma missão realmente divina.”
   Alfredo agora observa.
   — “Mas essa agora era a sua experiência e ele tinha uma consciência muito profunda da diferença entre seus objetivos e os objetivos de outras pessoas. Ele aprendera que cada pessoa (ou em última instância, cada criatura viva ou cada entidade) constrói seu próprio caminho, com as suas dificuldades, com diferentes manchas em seu passado, com diferentes sucessos e com diferentes fontes de prazer. E algo importante… ele agora sabia onde se refugiar, onde buscar uma recarga de energia!”
   Subitamente, dou-me conta que aquela conversa estava esgotada.
   Atualmente, a palavra ‘armaggedon’ foi associada a tragédias e a catástrofes de grandes proporções ou mesmo ao fim dos tempos. Talvez essa confusão seja antiga, porque ele surgiu como divindade apenas no final do período helênico. Quem sabe, porque ele talvez tenha sido aquele que veio para apagar as luzes. Mas isso certamente aconteceu apenas porque nunca se preocupou em associar seu nome à sua obra. Em suma, ele nunca se preocupou com reconhecimento.

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Outros contos do autor podem ser encontrados no menu de navegação deste site, acima, e em seu livro de contos Tecendo fragmentos, publicado pela Editora Metamorfose em novembro de 2022.

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Sobre quem escreve

Escritor com livro de crônicas publicado em 2021 e livro de contos em 2022. Doutor em Engenharia, professor da UFRGS e pesquisador do CNPq em energias renováveis. Editor convidado em livro publicado pela Academic Press.
Siga no instagram: @alexandrefbeluco