efeitos colaterais

como decifrar os efeitos devastadores dessa droga?

Conto escrito durante oficina de textos da Editora Metamorfose coordenada por Bruna A. Tessuto. É a história de uma pesquisadora, viajante no tempo, que viaja ao futuro para encontrar cientista que contribuiu decisivamente para entender os efeitos colaterais da droga utilizada para essas viagens.

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Efeitos colaterais

[por Alexandre F. Beluco]

   Lucy sentiu zumbidos em suas têmporas, atrás dos ouvidos, denunciando o início do efeito da chronodrina. Ela aprendera a sentir prazer com o deslocamento. Deu um passo à frente, sempre com pés descalços, e percebeu no pé esquerdo a textura metálica do deque do Centro Espaço Temporal e, no direito, à frente, a textura das pedras do piso da praça para onde estava saltando.
   A iluminação do deque tenta reproduzir o ambiente para onde o viajante estiver indo, mas nada consegue simular a insolação natural, a luz do sol em uma tarde de primavera. Ela servira como especialista em ciências no Centro por dezoito anos e seguia se surpreendendo com esses saltos. Esse frio na barriga que se sucede ao deslocamento não tem preço!
   Quando o desnorteamento típico passou, ela viu duas mulheres em um banco cerca de vinte metros à frente. Teve certeza que tudo tinha dado certo. Uma delas, a mais velha, permaneceu ali, sentada, enquanto a outra levantou-se assim que a viu chegando.
   — Lucy, que bom ver você!
   Abraçaram-se. Para Lucy, seu último encontro havia acontecido no dia anterior.
   — Já faz quanto? Três meses?
   — Esses dias têm sido muito tensos para mim — Lucy comentou, abaixando-se para vestir suas sandálias. — Eu defendo minha tese em três semanas.
   — Ela está em um dia ótimo. Ela perguntou por você.
   Lucy foi deslocada algumas décadas para o futuro, para conversar mais uma vez com a doutora Lucienne. Ela já estava em idade avançada e exigia cuidados permanentes, Recebia uma medicação experimental, para tratamento de uma doença neurológica degenerativa. Lucy estava inserida em uma pesquisa que buscava soluções para esse mal.
   — Eu tenho mais ou menos uma hora — disse Lucy.
   — Vá até ali e converse com ela. Depois de vocês conversarem, nós vamos caminhar um pouco ainda sob este sol maravilhoso. Ela já tinha pedido para dar uma caminhada,
   Lucy resistiu um pouco, como sempre que se aproxima dela. Seu trabalho foi o primeiro realmente importante a desvendar o desvanecimento da consciência em alguns quadros clínicos degenerativos. Era também um frio na barriga, mas diferente da sensação de um salto.
   — Lucy, que bom ver você! — era o sinal de que a chispa estava ali.
   — É muito bom reencontrá-la, doutora. Como vão as coisas?
   — Eu venho tentando me esforçar para seguir o que você me pediu, mas não está fácil.
   — Vá tentando como for possível — Lucy tentou aliviar a pressão sobre ela. — Você sabe que qualquer progresso será muito importante.
   — Você me sugeriu que eu tentasse entender como as coisas em meu interior acontecem — ela tentou iniciar uma explicação. — Como se fossem galhos e eu pulasse entre eles.
   — Sim, essa analogia ajudou em seu raciocínio?
   — Eu percebi que quando vou apagar, os galhos que eu costumo usar somem.
   — A senhora conseguiu avançar então.
   O trabalho científico da doutora Lucienne havia contribuído substancialmente para entender os processos de dependência que alguns viajantes apresentavam com a chronodrina. E não só da dependência mas também os efeitos dos saltos repetidos no espaço-tempo.
   — Era muito mais fácil o trabalho em laboratório, seguindo protocolos científicos e lidando com estudantes — reclamou a doutora.
   — Os desafios mudam ao longo da vida, não é?
   — Eu não precisaria estar fazendo esses esforços agora se você tivesse tomado melhores decisões. Você nunca pensou para além de seu momento presente.
   — Mas não é esse o melhor modo de se viver a vida?
   — É um devaneio filosófico — quase gritou a doutora. — Vocês vivem como se fossem imortais.
   — Você mesma dizia isso nas aulas!
   Lucy arrependeu-se do que disse. Estava se tornando frequente essa reação temperamental às demandas que lhe eram trazidas. Lucy queria relacionar conclusões bioquímicas com impressões colhidas em conversas pessoais. Talvez nos limites da pseudociência, mas (como dizem) os meios (quem sabe) justificariam os fins.
   — Escute — a doutora recomeçou. — Eu só quero descansar um pouco.
   — Mas você não está tendo as horas suficientes de sono todas as noites? — Lucy fez menção de chamar sua acompanhante para descobrir o que acontecia.
   — Não me refiro a isso, sua boba — ela complementou, com um olhar irônico. — Não é isso!
   A chronodrina é uma droga desenvolvida para viabilizar os saltos no espaço tempo. Ela se revelou ao longo das décadas ser agressiva contra processos neurológicos básicos. Além de criar forte dependência em quem a consome mesmo sem deslocar-se.
   — Lucy, você não percebe que nós perdemos os últimos anos com Walter por causa de suas decisões infundadas e essa loucura, esse frenesi por descobrir a verdade?
   — O que a verdade tem a ver com tudo isso?
   — Você quer ser a pessoa que vai descobrir uma cura para…
   — Doutora, eu só quero ajudar as pessoas — Lucy tentou defender seu ponto de vista. — Não existe nobreza nessa intenção?
   — Mas a que preço? — perguntou a doutora.
   Essa mágoa persistia em todos os depoimentos coletados. Lucy era uma especialista em ciência e decidiu seguir carreira acadêmica. Ela via os efeitos da droga e queria ajudar as pessoas. Estaria também ajudando a própria humanidade.
   — Eu sinto tanta falta dele!
   Lucy sabia que a chave estava dentro das mentes dos viajantes, A resposta estava em seus anseios mais íntimos.
   — A que preço — ela repetiu ainda, depois de alguns minutos. — A que preço?
   Lucy preferiu ficar em silêncio. Percebeu então que a doutora Lucienne chorava baixinho, ao seu lado. Mesmo assim, ela não conseguia tomar a iniciativa de algo que aliviasse aquela tensão. Uma pressão sobre ambas que sempre parecia estar ali, entre elas.
   — Esse sol está maravilhoso — disse a doutora.
   Lucy entendeu. A chispa se foi. Sempre quando ela se perdia de si mesma, comentava sobre algo como o tempo ou sobre o preço que pagavam pela dúzia de bananas.
   — Você quer caminhar? — Lucy perguntou. O movimento naturalmente lhe faria bem.
   Sem responder, levantou-se e postou seu braço para ser amparada.
   Sempre haveria esperança. Sempre.
   O tempo seria o melhor aliado.

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Outros contos do autor podem ser encontrados no menu de navegação deste site, acima, e em seu livro de contos Tecendo fragmentos, publicado pela Editora Metamorfose em novembro de 2022.

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Sobre quem escreve

Escritor com livro de crônicas publicado em 2021 e livro de contos em 2022. Doutor em Engenharia, professor da UFRGS e pesquisador do CNPq em energias renováveis. Editor convidado em livro publicado pela Academic Press.
Siga no instagram: @alexandrefbeluco