Urânia e Calíope

sobre a natureza da poesia e sobre o que move o poeta

A poesia é uma forma de arte (e é de fato uma das artes tradicionais) na qual a palavra e o texto constituem o meio de expressão e o poeta é o artífice. Mas a poesia transcende definições. Ela pode servir ao artífice e ao leitor de modos diferentes, criando um canal de comunicação poderoso.

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A poesia é um convite. As palavras e as sonoridades nos convidam a entrar no seu universo perdido. Passamos, através de cada verso, por um imenso portal, parecido com aquele que Dante Alighieri descreve no primeiro canto do Inferno, na Divina Comédia. Está escrito, bem acima do vão de entrada, que aquele lugar para onde o viajante segue foi gerado pelo primeiro amor e pelo saber supremo.

E é assim que nos sentimos ao abrir um livro de poemas. Existe bem no início de cada livro uma mão que nos guia, silenciosa e intocável, para esse outro lado do nosso mundo. Esse espaço que reflete e tenta alcançar o nosso mundo real e concreto é a própria poesia.

Octavio Paz em O arco e a lira, conduz o leitor a definições simbólicas e míticas da poesia, dizendo-nos que pode ser entendida como salvação, oração, alimento, fuga da morte e outras tantas definições. A poesia é tudo isso ao mesmo tempo e singularmente para cada um de nós, leitores. Podemos encontrar nas linhas de um poema percepções do mundo e dos sentimentos que nos conduzam a uma leitura particular de um universo todo de sensações e de expectativas.

A poesia por sua natureza, está associada à memória e ao coração. É o gênero da recordação, que etimologicamente se origina no latim “recordis”, dar corda novamente ao coração ou fazer passar novamente pelo coração. O eu lírico (a voz que conduz o poema e que equivale, por assim dizer, ao narrador no gênero narrativo) apresenta-nos um espelhamento da vida, das diferentes visões que podemos buscar na leitura do poema.

Schiller, poeta alemão, dizia que “poemas são beijos que o poeta dá ao mundo”, e não deixa de ser um tanto de verdade essa ideia. A poesia é a mais sincera visão de mundo de um indivíduo, ela surge das sensações e abstrações que o poeta engendra depois de absorver o que o seu cotidiano lhe oferece. E mesmo que um poema nos diga do passado, das mais primevas épocas, ainda assim, existe nesses versos a sensação de um poeta em relação ao seu tempo e ao tempo passado.

Fernando Pessoa e Jorge Luís Borges estavam alinhados numa ideia de poesia: ambos diziam que o “poeta é um fingidor”, todavia, esse “fingir” não é o que podemos entender como mentiroso ou falso, antes é “fazedor”, do latim “fingere”. O poeta é um construtor de mundos. E esse universo todo é construído através das metáforas, das sensações, de tudo aquilo que alicerça a nossa existência. Somos seres construídos a partir de nossos imaginários, alimentados o tempo todo. Tudo o que vemos, sentimos e experimentamos é absorvido pelo nosso imaginário, nada nos passa em vão. Todas essas experiências sensoriais, filosóficas, políticas e sentimentais são as linhas da tessitura do poema. Sentimos para poder escrever, escrevemos, pois, sentimos.

A sonoridade é nossa aliada na construção e na leitura do poema, primeiro entramos “surdamente no reino das palavras” apenas tentando compreender seus significados, ajustando sua presença no papel, na página do livro, nas telas em que todos os dias lemos um pouco de tudo ou um tanto de um todo que é a própria vida. O estrato sonoro é a própria musicalidade do poema, aquilo que permanece em nossos ouvidos como se a própria Calíope tivesse nos declamado o poema com sua voz de musa.

Grandes poetas percorreram a nossa história, homens e mulheres que compartilharam as suas mais profundas e íntimas consonâncias e dissonâncias com o mundo. Pensemos em Camões e o desconcerto do mundo, quando em seus sonetos ele expressa o seu desgosto com as injustiças; T.S.Eliot e a ideia do tempo, que nunca conseguimos dominar e que está sempre nos consumindo; Safo, poeta da antiguidade que nos disse num de seus fragmentos: “desejo e ardo”, versos únicos que nos remetem ao mais puro desejo, à fuga constante da solidão. Também o fizeram Lord Byron, Goethe, Shakesperare, Florbela Espanca, Carlos Drummond de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen e tantos outros. Das epopeias da antiguidade, entre heróis e deuses, os haikais do oriente à moderna lírica com suas irreverências e neologismos tudo nos fascina e comove.

A poesia é um inquietante convite para que pensemos sobre o que nos move, o que nos coloca em constante e mutante anseio de compreensão. Somos seres unidos em nossas diferenças por um fio de Ariadne: a linguagem e que é a matéria prima da poesia. O desdobramento, a multiplicação, a fragmentação de uma palavra, para a sua unificação em nossa leitura, no pacto que firmamos com o poeta quando lemos seus versos.

Por fim, podemos dizer que a poesia é comunhão entre o sagrado e o profano, sentimentos diversos e adversos, materialidades e abstrações. O poema é, como aquele ponto em que Adão parece tocar o dedo de Deus, na obra de Michelângelo: uma ponte ínfima entre o mundo das coisas e o mundo das ideias. E nós leitores habitamos esse espaço com as nossas leituras e imaginários.

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A imagem é um excerto de As musas Urânia e Calíope, de Simon Vouet, de 1634. Calíope foi a primeira das nove musas da Mitologia Grega, filhas de Zeus e Mnemosine, e foi a musa da poesia épica.

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Sobre quem escreve

É poeta e professora de estudos literários na FURG. É doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS, especializada em literatura portuguesa. Pratica longas caminhadas e gosta de um bom café!
Contato pelo email srtagabi@gmail.com.