um café que é uma barbaridade de amargo!

Conto escrito durante oficina de textos da Editora Metamorfose, entre setembro e novembro de 2022, coordenada por Bruna A. Tessuto. É a história de um trabalhador, procurado por uma entidade – a morte? – que teria vindo para buscá-lo mas que concede ainda um dia para que encerre questões mal resolvidas.

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Café amargo

[por Alexandre F. Beluco]

   — Boa tarde!
   — Já é hora para um “boa noite” — Maria disse, surpresa, ao aparecer na porta já entreaberta.
   — É — ele concordou. — Então, boa noite.
   — O que você faz por aqui?
   — Eu só queria responder aquela pergunta.
   — Qual pergunta? — ela não escondeu uma certa incredulidade. — Por que agora?
   — Sim — ele disse, sem conter a ansiedade.
   Alguns instantes se passaram em silêncio.
   — E qual seria a resposta?
   — A resposta é sim — ele repetiu. — Sim!
   — Eu não estou entendendo nada — Maria disse. — Já faz tanto tempo!
   — Um sonho, esta noite — ele começou a explicar, olhos para cima, buscando palavras. —Alguém sinistro me disse que eu teria um dia apenas.

   — Acorde.
   — O que foi? — ele perguntou, despertando. — O que você disse?
   — Eu pedi que você retorne à vigília — disse um homem de estatura não muito alta, com postura nobre e uma voz profundamente rouca. Eu tenho algo importante para lhe dizer.
   — Do que se trata? — ele perguntou, enfim sentado na cama e estranhando ter um desconhecido em seu quarto, vestindo um terno preto e óculos escuros.
   — Eu vim buscar você!
   Ele ficou sentado na cama esperando alguma explicação. Esse desconhecido era estranho e falava coisas estranhas.
   — Eu vim buscar você, mas (quem sabe eu me arrependa!) você está com sorte. Revisando seus arquivos eu percebi que você se arrepende de algumas coisas que não fez. Eu lhe dou um dia.
   — Como assim? Veio me buscar? Um dia para o quê?
   — Não perca tempo pedindo explicações. Você terá um dia para fazer o que você vem adiando há muito tempo. Apenas um dia e nada mais.
   Ele pensou um pouco e o homenzinho de terno seguia ali à sua frente. Sabia que em termos de adiamentos, era um mestre. Desde a ideia de passar mais tempo com o filho, que aliás já não via há semanas, até um simples conserto no banheiro da casa de sua mãe.
   — É difícil — ele protestou. — Eu nem saberia por onde começar.
   Ele se levantou e foi até o banheiro e quando se deu por conta aquele homem estranho tinha sumido dali, como se tivesse evaporado. Quando se olhou no espelho, percebeu manchas sob os olhos e uma feição que denunciava horas de um sono turbulento que parecia ter sido em vão.
   — Eu venho adiando tantas coisas que eu precisaria construir uma escala de importância para decidir qual adiamento eu teria que consertar — disse para si mesmo.
   Sabia que os compromissos do cotidiano do trabalho deveriam ser atendidos e em breve se tornariam o centro de suas atenções. Em sua cabeça, apenas uma ideia fixa ocupava seus pensamentos. Algo que havia sido focado pelo homem de terno. Algo a ser feito.
   — Entenda que talvez consertar algum adiamento pode ter mais a ver com sair de sua zona de conforto do que propriamente executar algo — ele ouviu o homenzinho dizer ao longe.
   Na cozinha, tentou preparar algo mas nada parecia ser suficiente para o que nem era assim uma necessidade. No banho, um ritual que sempre repete para colocar-se completamente acordado, entendeu que já estava alerta. O que realmente importava estava lá fora.
   — Era um sonho — seguiu falando consigo mesmo. — Só pode ser um sonho!
   Saiu de casa para a caminhada diária até o local onde trabalhava. Eram três quadras que às vezes percorria vagarosamente e em outras com alguma pressa. Esse percurso servia para ele se iludir que teria algum controle sobre o modo como o tempo escoa. Apenas uma ilusão.
   — Eu precisaria hoje de um café especialmente amargo — disse ao rapaz que acompanhava a entrada dos funcionários.
   — A cantina tem uma funcionária nova que parece ter uma raiva do mundo que não tem fim — disse o rapaz, para ele e para o próximo na fila para passar a roleta.
   — E o que isso teria a ver com cafés amargos?
   — Vai lá e prova o café dela antes de começar o trabalho — sugeriu o próximo na fila.
   Ele foi até a cantina e pediu uma taça de café preto. A fórmula infernal vinha liberando vapor, servida em um daqueles copinhos clássicos. Seria pequeno se o café fosse mesmo bom, mas já se anunciava longo demais caso a amargura surpreendesse.
   — Alguém está fazendo propaganda do meu café — ela disse, bastante simpática.
   — De fato, alguém elogiou a amargura do teu café.
   — E por que a amargura do meu café te trouxe aqui?
   — Eu preciso escolher algo que venho adiando há tempos — ele respondeu.
   Ela olhou para ele com expressão de quem não tinha entendido a mensagem.
   — E preciso fazer bem-feito o que estou adiando.
   — E você tem uma lista muito grande?
   — Nem tão grande, mas algumas coisas estão nessa lista há muito tempo.
   Ele sorveu um primeiro gole do café, depois de algumas assopradinhas para aliciar a temperatura. Entre a quentura e a amargura, ele não conseguiu segurar um esgar.
   — Me conta alguma delas.
   — Meu filho — ele citou o primeiro item da lista. — Vejo ele pouco.
   — Qual a idade dele?
   — Ele completou dezesseis anos, mês passado.
   — Você está fazendo um favor pra ele — ela sentenciou. — Me conta outro.
   Ele sorveu outro gole do café sob um olhar inquisidor dela. Já não parecia tão quente, mas a amargura rasgava sua garganta. Outro esgar foi inevitável.
   — Eu preciso consertar o banheiro da minha mãe — ele disse, depois de titubear alguns instantes, mais receoso com a reação dela que com seu sinistro visitante.
   — A tua mãe ainda não aprendeu a se virar? — ela atirou um tijolo em sua direção. — Você ainda não percebeu que ela quer manter um vínculo de dependência com você?
   Ele ficou sem reação e ela pareceu querer retomar suas atividades no balcão da cantina. Degustou um último gole daquele café infernalmente amargo e colocou o copo sobre o balcão. Pensou se conseguiria sair dali sem que ela quisesse lhe fazer outra pergunta.
   — Oi — ela disse, chamando sua atenção. — Essa lista teria algo a ver com algum arrependimento?
   — Eu não sei.
   — Você talvez adie para não se arrepender — ela seguiu com sua filosofia de balcão de cantina. — Você certamente já ouviu dizerem que nos arrependemos daquilo que não fazemos, né?
   Ele ficou olhando para ela e disse um “sim” tímido. Nunca imaginava que aquele café amargo viria acompanhado com aquela filosofia tão profunda. Pensou em perguntar-lhe algum conselho mas ficou em dúvida se valeria o risco de mais alguma pergunta.
   — Mas e se eu tiver deixado uma pergunta sem resposta? — acabou tentando.
   — Talvez não seja um arrependimento daí — ela respondeu. — Você se arrepende?
   — Não me arrependo — ele respondeu, depois de pensar um pouco. — Na época teria dado a mesma resposta, mesmo se tivesse vivido cem vezes.
   Eles se olharam por alguns instantes.
   — Agora você diria sim? — ela quebrou aquele silêncio estranho.
   — Eu diria sim.
   — Então vai lá — ela disse, abrindo um sorriso. — Diz que sim!
   — Ela vai pensar que eu sou louco.
   — Provavelmente vai dizer que você chegou atrasado.
   Ele foi se afastando e ouviu ela perguntando: “qual o nome dela?” Mas teria ficado evidente que seria uma mulher? “Maria”, ele se ouviu respondendo.
   O horário de trabalho estava apenas começando. Caminhou até a portaria e disse que teria que sair. Que lhe dessem uma falta justificada. Mas não houve resistência, parece que todos sabiam o que acontecia com ele. E todos concordavam com o que ele precisava fazer.
   Saiu da empresa e caminhou pela cidade por horas a fio até criar a coragem necessária para reencontrar sua antiga namorada. Planejou milhares de formas diferentes de dizer o que agora lhe parecia óbvio mas que no passado se mostrava inviável.
   Quando finalmente se sentiu preparado, tomou o rumo do prédio onde ele já sabia há algum tempo ela estava morando. Coincidentemente, o caminho até lá cruzava por ruas próximas ao de sua casa e de seu trabalho e encontrou alguns colegas saindo no final do turno.
   — Amargo aquele café, né? — disse um deles, quando se cruzaram.
   — Uma barbaridade de amargo!

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Outros contos do autor podem ser encontrados no menu de navegação deste site, acima, e em seu livro de contos Tecendo fragmentos, publicado pela Editora Metamorfose em novembro de 2022.

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Sobre quem escreve

Escritor com livro de crônicas publicado em 2021 e livro de contos em 2022. Doutor em Engenharia, professor da UFRGS e pesquisador do CNPq em energias renováveis. Editor convidado em livro publicado pela Academic Press.
Siga no instagram: @alexandrefbeluco