última chance para fazer o que já deveria ter feito

Este conto abre o livro Tecendo fragmentos, lançado em 05 de novembro último, na Feira do Livro de Porto Alegre. É a história de um homem atormentado que retorna várias vezes ao momento de um acidente que mudou sua vida. Agora ele decide retornar uma última vez.

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Uma última chance

[por Alexandre F. Beluco]

      Daniel conduzia a camioneta C-10 de seu tio pela estrada de mão dupla que leva a Tramandaí. Prestava atenção na pista do sentido contrário. O Golf branco logo apareceu mais adiante, no horário esperado.
      Avaliou a distância até o alvo ao mesmo tempo em que pisava no acelerador. No momento que julgasse adequado, giraria o volante para se chocar frontalmente com seu alvo. O impacto deveria ser suficiente para resolver tudo.
      Em sua mente, o tempo transcorria com uma celeridade diferente do tempo ordinário, comum. Imagens de outras épocas se cruzavam com lembranças de insucessos. Ele já sabia que o impacto agora seria devastador.
      Imagens confusas de uma adolescência atormentada, com muito álcool, drogas e uma soberba que ele nem reconhecia mais. Soberba que foi se desmanchando após o acidente, que ele considera ter sido sua última atitude legitimamente irresponsável. Depois, os casamentos e uma vida profissional de altos e baixos deram cabo do que restava.
      Agora, nem se ele quisesse haveria espaço para arrependimentos.

      Algumas horas antes, décadas depois:
      — Você entendeu as cláusulas do termo de responsabilidade?
      — Sim.
      — Você leu todas as cláusulas específicas para este… — inquiriu o agente.
      — Eu não pretendo processar vocês, acredite em mim — Daniel o interrompeu, já se levantando e estendendo a mão para um aperto protocolar, encerrando a reunião.
      — Você receberá então as instruções — disse o agente de viagens, também se levantando. — Se fizer uso de todos os procedimentos de segurança, tudo vai dar certo.
      — Sim, desta vez vai dar certo.
      Daniel rapidamente saiu do escritório e deixou o prédio. Tinha ainda algumas coisas para resolver antes da viagem. Em vinte e poucas horas, estaria se deslocando mais uma vez através do espaço-tempo.
      Tinha cometido um erro quando era muito jovem e nunca pagou por ele. Cultivou um remorso que lhe corroeu alguns relacionamentos e muitas amizades. Havia empreendido dezenas de viagens tentando corrigir o erro, ainda sem sucesso.
      “Certos acontecimentos parecem ter uma força incrível. Eles se impõem sobre nossas decisões e sobre nossos desejos”, justificava o agente de viagens que lhe atendia. Ele entendeu com o tempo, da pior forma possível, que não se muda o passado. Quer dizer, você até pode tentar, mas algum tipo de balanceamento temporal acaba se impondo.
      Daniel recebeu o código para o aplicativo de viagens no horário agendado. Preparou-se vestindo as roupas que havia separado e, no momento do deslocamento, ficou em pé conforme as instruções, ingeriu a droga receitada e acionou o aplicativo. Sugerem que se tente respirar normalmente durante o deslocamento.
      Houve uma vez, quando surgiram as viagens no tempo e pacotes de viagens passaram a ser oferecidos, que ele viajou pensando em esvaziar ou mesmo furar o pneu do carro que usaram para sair em busca de bebidas. Então algo acontecia para garantir que o acidente não fosse impedido. No caso, um vizinho que devia um favor emprestou seu carro.
      Quando abriu os olhos e sentiu que a intensa dor de cabeça que sucede o deslocamento havia amenizado um pouco, Daniel percebeu que estava no local correto. Era a Avenida Voluntários da Pátria, em Porto Alegre, próximo à Avenida Sertório, um pouco antes da Rua Doutor João Inácio, onde seu tio tinha uma oficina mecânica de automóveis. Ali, ele tomaria emprestada a camioneta C-10.
      Como havia uma certa folga de tempo, ele caminhou até a Avenida Farrapos e, em uma banca de jornais, confirmou a data. Era domingo, dia 22 de novembro de 1998. Estava no local certo e na data correta. Até aquele momento, tudo estava mesmo dando certo.
      — Vai levar alguma coisa, seu Daniel? — perguntou o jornaleiro.
      — Uma Zero Hora, por favor.
      — E o que vai ser hoje? Vai até a praia?
      — Como sempre.
      Foram tantas viagens que o jornaleiro já o conhecia. O tio sabia e havia consentido com o uso da camioneta. A chave do cadeado do portão da oficina mecânica também havia sido fornecida por ele.
      — O seu Carlos Alberto não quer uma Zero Hora também?
      — Acho que ele passa aí mais tarde pra pegar, ok?
      — Estarei aqui — ele disse, alegremente.
      — Uma pergunta: qual o horário agora?
      — Agora são onze e quinze da manhã — ele respondeu, sem consultar o relógio.
      — Obrigado — Daniel respondeu, confirmando também o horário no próprio relógio.
      Em uma circunstância fortemente reprovada pelas agências de viagens, ele havia feito vários deslocamentos com o conhecimento de seus “dois tios”: o seu tio de 1998 e o seu tio que lhe era contemporâneo. Isso dava a medida de seu desespero. Outras pessoas acabaram também sabendo de suas viagens.
      — Aqueles seus dois primos, os gêmeos, já estiveram aqui comprando jornais.
      O tio tinha essa oficina, mais um estacionamento no centro da cidade e um pequeno supermercado na cidade vizinha. As dezenas de tentativas que foram empreendidas se valeram de um valioso apoio logístico dele.
      — É que lá em casa cada um pega um jornal e passa o dia lendo até as notas de rodapé.
      Riram juntos. Como explicar que ele mesmo havia estado ali em momentos diferentes de sua vida, insistindo com tentativas frustradas de impedir aquele acidente que moldaria sua vida? Era necessário agora e para sempre um golpe definitivo no destino.
      Caminhou então até a oficina, abriu o cadeado, empurrou o portão e entrou. Lá estava, mais uma vez, a Chevrolet C-10 verde clara. Ainda seria necessário abastecê-la antes de pegar a estrada. Saiu dali com o veículo, estacionou na calçada, fechou o portão e o cadeado. Voltou à camioneta. Ligou o motor e seguiu até o posto de abastecimento.
      — Olá, Daniel, enchemos o tanque? — perguntou o frentista.
      Também havia feito amizade com os dois frentistas do posto na Avenida Farrapos.
      — Vai estar bom o tempo hoje na praia — disse o frentista, apoiado na mangueira de combustível.
      — Ideal para uma boa caipirinha e um bom churrasco de costela, hein? — Daniel concordou.
      O frentista riu, achando que compartilhava de algum sonho de um dia perfeito na praia, com amigos e família. Daniel dividia esses comentários com os amigos, mais por camaradagem, pois há muito tempo não se concedia mais o direito de sonhar.
      Tomou então o rumo da Freeway em direção ao litoral. A viagem transcorreu com tranquilidade. Uma C-10 não é boa companhia para uma jornada longa, mas ele já estava acostumado. Carro barulhento, trepidante, quente.
      Tinha cometido um erro no passado e não pagou por ele, como ele dizia para si mesmo. Mas essa vida atormentada, essas viagens no tempo que sempre envolvem riscos, as pessoas infelizes ao seu redor, já não seriam um preço suficiente?
      Por volta das duas horas da tarde, atingiu a entrada da estrada que conduzia até Tramandaí. Rodou com a C-10 ainda algumas centenas de metros e estacionou no acostamento um pouco antes do acesso para a Estrada do Mar.
      As dezenas de viagens que ele empreendera exigiram, em determinado momento, um esforço de planejamento. Era necessário evitar que um mesmo jornaleiro ou frentista fosse contactado em sequência por suas versões de tempos diferentes. E um mesmo veículo poderia ser utilizado por um viajante (ou por uma de suas diferentes versões) por viagem.
      Observou mais uma vez o movimento de pessoas e de veículos. Todos vestiam roupas típicas dos anos noventa. Ele se viu passando dentro de um Uno Mille em uma das várias tentativas anteriores de evitar o acidente que se sucederia em alguns minutos.
      Em uma de suas viagens, ele tomou emprestado um caminhão de seu tio e tratou de impedir a passagem na estrada. Provocou uma falha mecânica e colocou o caminhão no meio da pista para travar os carros. Ele soube depois que um outro acidente acabou acontecendo, em outra rodovia, com os mesmos efeitos. Ele depois empreendeu uma viagem apenas para encontrar a si mesmo e explicar o insucesso desse plano. Quando o relógio chegou às duas e quarenta e oito da tarde, era o momento de avançar. Acionou o motor, liberou o freio de estacionamento e começou a rodar. Acessou a pista da rodovia e tomou a direção de Tramandaí.
      Ultrapassando o acesso para a Estrada do Mar, acelerou com firmeza. Então logo viu o Golf branco no horizonte. Pisou no acelerador e seu foco ficou concentrado naquele carro. Conforme a distância até o alvo diminuía cada vez mais rapidamente, ele percebia que essa seria a última tentativa.
      Quando os dois veículos estavam quase se cruzando, Daniel engatou uma marcha menor para elevar o torque e girou o volante para a esquerda. O Golf não mostrou sinais de que desviaria seu curso. Nesse momento, a versão jovem de Daniel com certeza já estaria sonolenta. Girou um pouco mais o volante para a esquerda, para acertar o Golf com a direita de sua C-10. Assim, talvez ambos sobrevivessem.
      Acelerando e com torque mantido em elevação, o motor da camioneta roncava alto. Era quase como um predador rosnando ferozmente avançando sobre sua presa e anunciando que ela não tinha como escapar.
      O impacto foi devastador.
      O Golf girou duas vezes até parar do outro lado da rodovia. A C-10 rodou meia volta e parou no acostamento, de frente para o Golf e para o acesso da Estrada do Mar. A parte dianteira direita estava destruída. Daniel estava bastante ferido, sentia uma dor intensa no abdômen e percebia sangue escorrendo em abundância da testa.
      Alguém tocou em seu braço. Girou a cabeça, que estava escorada no volante. Percebeu que era ele mesmo, recém-chegado ali em alguma das suas várias tentativas anteriores para impedir o evento que ele tinha finalmente conseguido impedir.
      Seus olhares se cruzaram, e o Daniel de outras tentativas lhe disse:
      — Você conseguiu! Você conseguiu!
      Não pôde fazer muito mais do que movimentar a cabeça em sinal afirmativo. O Daniel de outras tentativas lhe fez um sinal com a cabeça, apontando a rodovia. Daniel se lembrava bem da viagem em que assistira sua versão mais veterana ter sucesso impedindo o acidente. Ele tentara em vão, em viagens subsequentes, mudar seu futuro.
      Levantou a cabeça, com muito esforço. Na estrada, um Gol bolinha, azul marinho, passava devagar, observando os estragos daquele acidente terrível. Daniel reconheceu uma mulher ainda jovem dentro do Gol, dirigindo, e uma menina no banco do passageiro, talvez com dez anos. Duas pessoas que teriam suas vidas alteradas por aquele choque.
      Daniel sabia de tudo. A mulher era a Cristiane, trinta e sete anos, pedagoga, funcionária da prefeitura de Capão de Canoa. A menina era a Tatiana, com dez anos e meio. Cristiane havia se divorciado há pouco tempo. Tatiana adorava dança clássica. Cristiane estava se esforçando para pagar as aulas de dança para a filha.
      A vida de Daniel havia sido forjada pelo choque que ele agora conseguira impedir entre o Golf e o Gol. Esse sim, um impacto devastador. Um acidente que matou as duas passageiras do Gol e também o passageiro do Golf, um amigo de Daniel do colegial. Daniel e o amigo tinham saído depois do almoço para buscar ainda mais bebida na cidade vizinha, Osório, como se fosse ainda necessário ou mesmo possível consumir mais bebida do que eles e toda sua turma haviam consumido desde as nove horas da noite anterior.
      — Eu preciso ir — disse o Daniel de tentativas anteriores.
      Daniel encostou novamente a cabeça sobre o volante e fechou o olho esquerdo. O olho direito já estava tomado do sangue que escorria da testa. Sabia que não sobreviveria, mas também sabia que a partir daquele momento poderia repousar em paz.
      Um forte cheiro de combustível no ar parecia estar selando o destino de Daniel. Em poucos minutos, um ruído denunciou que um incêndio estava iniciando. Seria melhor assim. Se encontrassem suas digitais, não entenderiam o que tinha acontecido ali.

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Esta narrativa é o conto de abertura – é o primeiro dos dez contos que integram o livro Tecendo fragmentos, publicado pela Editora Metamorfose em novembro de 2022. Outros contos do autor podem ser encontrados, neste site, no menu superior ou em tópico específico.

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Sobre quem escreve

Escritor com livro de crônicas publicado em 2021 e livro de contos em 2022. Doutor em Engenharia, professor da UFRGS e pesquisador do CNPq em energias renováveis. Editor convidado em livro publicado pela Academic Press.
Siga no instagram: @alexandrefbeluco