tecendo fragmentos

de tantos possíveis males, um menor

Amigos em uma pizzaria. Um encontro repetido ao longo dos anos. Dois casais juntos há bastante tempo. Nada poderia soar melhor e, talvez, por outro lado, tudo para dar errado. Ou não – porque em breve alguém vai sugerir uma nova ida à pizzaria. Quem sabe para uma nova rodada…

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De tantos possíveis males, um menor

[por Alexandre F. Beluco]

   “Querido, tenho saudades”, escreveu Beatriz para Carlos, pelo aplicativo de mensagens.
   “Eu também”, Carlos respondeu. “Também tenho saudades.”
   Carlos não queria iludir Beatriz. O affair que os uniu durante alguns meses já havia se esgotado. Os dois sabiam disso, mas estavam naquela fase em que não queriam assumir esse final. Eles tiveram bons momentos, principalmente no começo. Denise, ao seu lado, na mesa da pizzaria, mostrava-se aberta a uma reaproximação. Berenice estava à sua frente e todos observaram Alfredo se aproximar e sentar-se.
   — O banheiro daqui está bem melhor, mas ainda é um lixo!
   — Eu já sei, você sempre repete esse comentário — Berenice alfinetou.
   — Mesmo assim, seguimos vindo aqui, ano após ano — Denise tentou aliviar um clima de conflito que parecia estar se estabelecendo.
   — Uma diferença é que tentamos comer menos para não engordar — Carlos tentou mudar o rumo da conversa.
   — É incrível como a cada ano temos que comer menos — Denise concordou com o marido. — É cada vez mais difícil manter qualquer sombra da velha forma que tínhamos na época da faculdade.
   — Eu sigo comendo como um porco!
   — Ah, rapaz, assuma! — Alfredo sempre parecia ter razão, e Carlos tentava trazê-lo ao bom senso comum.
   — Todos nós estamos nos cuidando mais do que antes.
   — Eu não me cuido. Nunca vou me privar desses prazeres mundanos!
   — Ele tem razão, segue comendo como um porco — disse Berenice, que não parecia interessada em um armistício. — E, com o tempo, passou também a se comportar como um porco. Ronca como um porco! Cheira como um porco!
   O atendente da pizzaria trouxe mais uma bandeja, agora com pedaços de uma pizza quatro queijos. Ele anunciou o sabor e todos quiseram um pedaço.
   — Eu adoro a quatro queijos. Mas fica especial quando incluem parmesão — Denise declarou, buscando os olhos (e um pouco de cumplicidade) de Carlos.
   — Não adianta melhorar de vida. Esses gostos não nos abandonam, não é mesmo? — concordou Berenice. Eram amigos desde o último ano da faculdade, quando criaram o costume de frequentar essa pizzaria e de repetir esse encontro todos os anos.
   — Eu me recordo que nas primeiras vezes outros colegas nos acompanharam — disse Carlos, percebendo uma notificação de chegada de mensagem em seu celular. “Você anda muito distante”, disse Beatriz, em nova mensagem.
   — E tínhamos um costume de cantar parabéns-pra- você para algum colega — Berenice disse, tentando se afastar do conflito com Alfredo.
   — Vocês se lembram disso? — Denise não escondia o espanto. — Você lembra, Carlos?
   — Eu me lembro, sim. Para quem mesmo cantávamos parabéns?
   — Era sempre um mesmo colega. A gente nem se lembrava mais do dia do aniversário dele. Mas bastava alguém puxar a musiquinha e todos acompanhavam.
   — A gostosa da Cláudia vinha naquelas primeiras vezes — Alfredo retomou suas tentativas de atrapalhar a paz dos amigos.
   — Fala como um porco. Em algum momento da sua vida você vai perceber que essas grosserias soam quase como se você estivesse arrotando em público.
   “É o trabalho, o dia a dia cansativo”, Carlos respondeu.
   — Vários colegas nos acompanhavam, meninos e meninas — Denise lembrou.
   — Além de comermos menos com o tempo, também vemos nosso círculo de amizades ir ficando mais restrito — disse seu marido.
   Carlos queria mesmo era encontrar uma saída honrosa para esse affair com a Beatriz. Essa janta anual acabou vindo a calhar. Ele pôde se distrair um pouco, e também perceber que Denise ainda era uma mulher interessante. Berenice e Alfredo estavam juntos há muito tempo. Já eram namorados no final da graduação. Denise e Carlos, por sua vez, tiveram uma aproximação maior quando, alguns anos depois, trabalharam juntos.
   — Você sabe que eu já não tenho mais paciência para esse nosso cotidiano, não sabe? — Alfredo continuou, agora parecendo que conversava apenas com sua esposa.
   — Eu sei que você é um grosseiro!
   — Vocês sempre brigam assim em público, depois ficam bem.
   Denise fez esse último comentário com a melhor das intenções. Carlos a considera uma mulher carinhosa. E ele vê essa boa característica tanto com ele quanto com outros, claro que em doses e em circunstâncias diferentes.
   — Pois é… essa gangorra já não me agrada mais. Estou cansado!
   — O que aconteceu hoje? Foi por eu ter te chamado de porco?
   Não era apenas Alfredo que não escondia mais um certo cansaço. Berenice também já não mais escondia.
   — Eu tenho muitas verdades para contar.
   — Gente, não será hora de pedirmos a conta? — disse Berenice, enfim capitulando e recorrendo aos amigos na mesa.
   “Olha só… Eu acho que eu e você precisaríamos conversar”, escreveu Beatriz.
   — Eu sou homossexual! — Alfredo declarou, sério.
   — Pronto! Vamos pedir a conta.
   — Ei, Carlos, eu sempre cultivei uma paixão platônica por você! — Alfredo disse na direção de Carlos, agora já não contendo um olhar cínico e um sorriso.
   “Esse tipo de mensagem sempre está relacionada com fim-de-caso”, Carlos respondeu.
   — Você está esperando que eu comente algo?
   Alfredo sempre teve o costume de dizer provocações em público, entre amigos. Essa não seria a primeira vez, nem seria a última.
   — Por quê? Você pretende desprezar a minha opção?
   — Eu te conheço, Alfredo.
   — Porco e ignorante. Veja se tem cabimento chamar de opção! — Berenice reclamou, impaciente pelo fim daquela janta e da discussão.
   “Talvez nosso tempo já tenha mesmo se esgotado”, Beatriz escreveu.
   Carlos pensou que essa mensagem dela abria caminho para um encerramento honroso. Bastava apenas agora pensar em uma boa resposta. Afinal de contas, eles tiveram bons momentos. E esses bons momentos merecem ser lembrados e respeitados.
   Alfredo empertigou-se para dizer uma nova frase de efeito.
   — Eu venho trepando com a Beatriz!
   — Pu-ta-que-pariu! — Berenice disse em tom mais elevado, lentamente, quase gritando.
   Alfredo anunciou o caso olhando nos olhos de Berenice. Carlos ainda estava preocupado em encerrar com a Beatriz, e essa poderia ser a deixa perfeita. Denise observava tudo meio sem saber como reagir.
   — Bere, eu apostaria que agora ele fala a verdade — Denise falou com boa intenção, mas perceberia depois que teria soado como uma provocação.
   — Como assim? Você sabe de algo?
   — Eu não sei de nada! Mas olha pra ele. Ele está falando a verdade.
   “Você andou saindo com o Alfredo?”, Carlos não resistiu.
   — Ai, meu Deus! Você é um porco!
   — Bere, vamos até o toilette? — Denise propôs.
   — Por que você não deixa essas porquices para conversarmos em casa?
   “Ah, eu e você já estávamos esfriando”, Beatriz respondeu. “Mas como você soube?”
   — Sou um porco, ok!, mas ela adora trepar comigo.
   “Ele acabou de me contar”, Carlos respondeu. “E acho que ele gostou.”
   — Depois de tantos anos, você poderia ao menos me respeitar!
   “E quem não gostaria. Não é, fofo?”, ela escreveu. Berenice levantou-se e se dirigiu ao banheiro.
   Denise a acompanhou. Carlos imaginava que, naquele momento, Alfredo desfiaria a conversa que homens esperam que nesse momento se desenvolva entre homens. Mas ele ficou em silêncio.
   “Eu só espero que a Bere não fique sabendo. Ela gosta muito dele”, escreveu Beatriz.
   “Se souber, não será por mim”, Carlos escreveu.
   Alfredo buscou o copo para mais alguns goles da cerveja, que já não estava tão gelada como antes. Ele se sentia como sobrevivente de um tiroteio. Carlos estava realmente pensando em um jeito de quebrar o gelo.
   — Tchê, não me leve a mal, mas o que eu disse sobre você foi um modo de abrir caminho para o que eu realmente queria dizer. Você entendeu, né?
   Alfredo retornou ao copo de cerveja mais vezes do que quando as mulheres ainda estavam ali com eles. Carlos pensou que — quem sabe, né? — talvez seja um bom momento para um gole de cerveja. Ou quem sabe fosse a hora certa para ir para casa.
   — Ei, fica tranquilo, mas eu sei que você já andou ciscando ali também.
   — Ahn? Eu não entendi. Ciscando onde? São as galinhas que ciscam, né?
   — Você acreditou mesmo que a Beatriz guardaria segredo?
   Carlos fez uma careta, pensando em encerrar a questão sem deixar claro que estivesse confirmando qualquer informação. Se funcionou ou não ele nunca vai saber. Então eles viram as duas saindo do banheiro e caminhando em direção à saída. Não olharam na direção deles.
   “Alfredo é um imbecil!”, Denise escreveu para Carlos pelo aplicativo de mensagens.
   “É burro mesmo, kkk”, respondeu Carlos.
   “Vou com a Berenice para casa. Ela não pode ficar sozinha!”
   “Se precisar de algo, me avise!”
   “Se cuide, nos vemos em casa. Beijo!”, ela concluiu.
   Carlos e Alfredo seguiram na mesa alguns instantes. Ambos estavam um tanto constrangidos. Carlos já não sabia como sair dali. Cada minuto então parecia uma eternidade.
   Alfredo, apesar de tudo, desfrutava de certa liberdade.
   — É engraçado como são as mulheres, não é?
   — É engraçada a vida — disse Carlos. — Nós que a complicamos.
   — Tomamos mais uma?
   — Eu encaro uma saideira.
   Carlos gostou do que Denise escreveu no final de sua última mensagem: “Beijo!”

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Este é o quarto conto dos dez que integram o livro Tecendo fragmentos, publicado pela Editora Metamorfose em novembro de 2022. Outros contos do autor podem ser encontrados, neste site, no menu superior ou em tópico específico.

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Sobre quem escreve

Escritor com livro de crônicas publicado em 2021 e livro de contos em 2022. Doutor em Engenharia, professor da UFRGS e pesquisador do CNPq em energias renováveis. Editor convidado em livro publicado pela Academic Press.
Siga no instagram: @alexandrefbeluco